sábado, 10 de dezembro de 2016

Crônicas Mitty - Capítulo 2



O sol brilhava há algumas horas quando Otto enfim chegou à sede da Organização. As instalações eram enormes e ocupavam boa parte de um bairro nobre no Distrito 25. Apesar de ter passado pelo lugar várias vezes, o rapaz mantinha a mesma admiração de quando vira a Organização pela primeira vez. O local era dividido em três seções. A primeira era a parte administrativa, formada por seis prédios, um maior com 20 andares e os outros cinco possuindo 12 andares cada. O número de prédios nessa seção era justificado pela necessidade do funcionamento dos laboratórios de pesquisa em locais onde a diretoria pudesse supervisionar tudo. À esquerda ficavam os alojamentos de soldados que ali decidiram residir. Os prédios eram mais simples se comparados aos da administração, porém eram numerosos, pois havia aproximadamente dez prédios de 15 andares ali. À direita da parte administrativa estavam concentrados os locais de combate e treinamento. A seção era composta por três arenas enormes utilizadas apenas em ocasiões especiais, como torneios e campeonatos de luta, e cinco campos de treino, que se conectavam diretamente ao prédio principal da administração através de tubos. Os membros da Organização se esforçavam para que o local parecesse bonito, até mesmo cultivando árvores artificiais e tentando simular uma vegetação, algo raro no planeta desde a Explosão.

Otto ficou observando tudo por aproximadamente cinco minutos, até que se deu conta de que deveria entrar. Os guardas na entrada o encararam com uma expressão severa. Eram dois brutamontes que, vestidos em suas armaduras, passavam a impressão de serem ainda maiores. O rapaz os ignorou e foi diretamente até o maior prédio da parte administrativa. Na recepção estava Mariah Fontana, uma mulher de cabelos azuis que era encarregada direta do diretor, Andrew Padilha. Ela e o irmão, Joe, tinham privilégios no conselho que regia a Organização, justamente por terem uma proximidade tão grande com Andrew. Ela ficou responsável nas últimas semanas por supervisionar o treinamento de Otto, além de anunciar a última etapa. Após mais de 30 anos trabalhando ao lado de Andrew, ela não esperava supervisionar a entrada de um Fanyc na corporação e estava transparecendo em seu rosto a vontade de anunciar logo a última tarefa do jovem.
- Como sempre, adiantado. - declarou Mariah ao ver o rapaz.
- Uma das minhas muitas virtudes, dona. - respondeu o jovem, de forma seca.
- Deixaremos as formalidades então. - disse a mulher, apontando o elevador em que ambos deveriam entrar.

Mariah foi seguida por Otto, e eles se dirigiram ao 19º andar do prédio principal, entrando em sua sala. O local parecia maior por dentro do que por fora. Ocupava metade do andar, sendo o outro lado destinado ao irmão da poderosa mulher. Otto estranhou que não havia qualquer tipo de decoração no lugar, apenas uma janela com persianas fechadas. No centro estava a mesa que a mulher deveria usar em seu cotidiano. A sala era tão grande que os saltos de Mariah faziam um enorme barulho, mas ela não se incomodava com isso. Parecia ser um de seus prazeres o barulho ecoando naquele enorme recinto. Ambos tomaram seus devidos lugares à mesa, enquanto Mariah tirava alguns papéis de uma gaveta.

- Nesta pasta tenho todos os relatórios de seu desempenho ao longo do treinamento. Levando em conta todos os fatores, é uma surpresa que tenha se saído tão bem durante as primeiras etapas. Normalmente encerraríamos tudo por aqui, mas Andrew quer ter uma última prova a respeito dos seus conhecimentos e habilidades. - disse Mariah, em um tom calmo. Otto nada respondeu, então ela continuou. - Como você bem sabe, estamos em um período pacífico, tudo graças aos nossos esquadrões. A nossa última tarefa é te alocar em um deles, para que realize uma missão de inteligência no distrito 48.

Os esquadrões da Organização são grupos compostos por cinco soldados bem treinados, cada um especialista em sua função específica. Cada grupo tem o líder, dois soldados para combate, um batedor e um caçador. Não se sabe ao todo quantos existem, mas o que é de conhecimento de todos é que são unidades que agem em situações bem específicas, como resolução de conflitos, para evitar guerras e confrontos abertos entre os distritos. Otto havia estudado bastante sobre as unidades, e sabia que ser alocado para uma delas logo de início poderia significar uma imensa responsabilidade.

Sem questionar, o jovem Fanyc entendeu a situação e pegou a pasta contendo as instruções. Recebeu ainda uma espécie de relógio que deveria alocar próximo ao punho esquerdo: era o dispositivo de comunicação usado pelos soldados. Iria servir para que Otto pudesse manter contato com a Organização, através de um canal separado, e com seus futuros companheiros no decorrer da missão.

Após receber os papéis, Otto foi convidado a se retirar. Ele abriu as instruções apontando que a partir daquele dia ele teria um alojamento temporário nas dependências da Organização, e no dia seguinte teria de se apresentar pela manhã ao Esquadrão Real para cumprir a última etapa do processo de seu alistamento.



Após ter falado com Mariah, Otto procurou Felícia e disse que iria cumprir uma missão como integrante de esquadrão antes de ter seu alistamento efetivado. A jovem ficou contente com o resultado, mas manteve para si a suspeita sobre o fato do rapaz ter sido alocado para um esquadrão de imediato. Para ela, que ficou três anos trabalhando com papelada e havia sido indicada para uma unidade há apenas seis meses, era incoerente Otto já ser colocado em campo. Para Felícia, o principal objetivo da missão seria sabotar o rapaz. Mesmo preocupada ela decidiu não falar nada e combinou de se encontrar com Otto após o fim do expediente.

Os soldados da Organização não dispunham de muito luxo. Cada um dos diversos apartamentos era bem pequeno e apertado, e as suítes no topo dos alojamentos eram destinadas a membros de elite que nunca apareciam para desfrutar de suas benesses. Otto se viu em um pequeno apartamento com um quarto, banheiro, além da cozinha que possuía um pequeno balcão de mármore fazendo divisa com a sala de estar. A sala não possuía TV, mas contava com sofá de três lugares e mesa de centro. A cozinha já estava equipada com fogão, pia e armário suspenso em uma combinação que tentava otimizar ao máximo o espaço disponível. O quarto tinha um pequeno roupeiro em que caberiam algumas peças, além de uma cama de solteiro que continha um colchão velho e surrado. Definitivamente não parecia ser um lugar acolhedor, pensou Otto. Ao que tudo indicava as instalações foram deixadas há tempos por algum ex-soldado ou alguém que foi promovido.

O jovem não portava nada consigo no momento em que foi conduzido ao apartamento. Havia deixado tudo em uma pousada na qual se hospedava há meses, desde quando intensificou suas tentativas de entrar na Organização. Teria de buscar seus pertences depois, mas decidiu se deitar na cama por alguns minutos e analisar o conteúdo dos arquivos.

As páginas continham breves descrições dos membros do Esquadrão Real até sua entrada. O primeiro arquivo era do membro mais antigo ainda em atividade, Jason Flipy, 25 anos, o batedor. Há dez anos foi alistado para a Organização, como um prodígio, e ganhou o cargo ao se mostrar único em campo. Responsável por fazer o reconhecimento dos locais e avisar aos outros sobre como acha que devem proceder na primeira investida, ele nunca errou. Sua capacidade de percepção é muito alta e, em diversas situações, a líder da equipe nem precisa pensar em um plano de ação. Seu cabelo verde em tons escuros acaba por chamar muita atenção, por isso Flipy está sempre com uma boina de cor neutra, para manter a discrição durante as missões.

A segunda página falava sobre os irmãos Khaled, gêmeos brutamontes com quase dois metros de altura. Aos 26 anos, Ronaldo e David haviam se alistado há pouco tempo e se mostravam bravos guerreiros. Receberam tantos convites que escolheram qual o esquadrão que teria a honra de contar com sua atuação.  Além de força bruta, possuem uma inteligência incomum aos soldados do porte de ambos, o que os torna excelentes guerreiros quando atuam em conjunto. Separados, no entanto, acabam se mostrando frágeis.

O caçador, Matyas Vilanova, apareceu na terceira página. Aos 38 anos, Matyas atua há pouco mais de um ano no Real. De cabelo avermelhado e olhos pretos, é extremamente silencioso em situações de tensão. Sua função é ficar o mais distante possível do grupo, utilizando suas habilidades para acertar inimigos à distância com suas magias e flechas. Enquanto o restante vai para o front de batalha, Vilanova fica preocupado com o que há ao redor e também cura seus aliados quando necessário.

A líder do Real é Leona Silveira. Combatente recrutada ainda criança, ela está em seu auge, aos 40 anos. Sua altura mediana engana muitos em muitas situações ela mostrou ter aptidão suficiente para ser levada aos esquadrões secretos. Sua maior habilidade ultrapassa os instintos de combate. Ela se prova realmente eficaz ao harmonizar todos os temperamentos de sua equipe, fazendo com que as missões sejam bem sucedidas. Realmente um prodígio em termos de liderança, principalmente quando comparada aos bicentenários comandantes que não largam suas posições por motivo algum.

Após as páginas descritivas, Fanyc abriu um arquivo que continha os detalhes da missão. O objetivo primário era escoltar o comerciante Adelbando Phie do Distrito 25 até o 48. Segundo o relatório, Phie havia prosperado muito nas últimas duas décadas, o que despertou certo interesse dos concorrentes que eram até então estabelecidos e se viram ameaçados pelo império que surgia e lavava seu nome. Olhando atentamente, Otto conseguiu perceber um código escaneável no final da página. Ele apontou o dispositivo para o código e uma imagem holográfica saiu de seu pulso.

A pessoa que surgiu estava coberta com uma roupa preta. Antes que o holograma começasse a falar, Otto sentiu uma espécie de picada no pulso: era o dispositivo se certificando de que o DNA do portador batia com o de quem deveria receber a mensagem. Em seguida o holograma começou a se mexer, e o jovem ouviu os dizeres.

- Seu principal objetivo é investigar a fundo quais são as verdadeiras atividades do comerciante. Tamanha cautela, evitando o transporte por vias movimentadas e cheias de gente, gera suspeita e a Organização quer descobrir do que se trata. Este objetivo tem prioridade em relação aos demais e, em caso extremo, você pode e deve abandonar seu esquadrão e preservar as informações colhidas. Nenhuma informação sigilosa deve ser enviada através dos dispositivo. Caso surja alguma emergência e precise de remoção, use um canal criptografado para entrar em contato. Mostre que tem valor e será recompensado, Fanyc.

Depois da mensagem o holograma desapareceu. Otto ainda passou mais algumas horas revisando a papelada como forma de decorar tudo sobre os outros membros do Real e suas instruções. Colocou um mapa virtual no dispositivo que portava e acrescentou ainda possíveis pontos de fuga caso a situação exigisse. Pensou em dividir o que vira com Felícia, mas achou melhor ter cautela e evitar que ela soubesse demais sobre algo que nem ele tinha certeza. Não sabia se a figura na mensagem se tratava de alguém do suposto conselho diretor da Organização ou do próprio Andrew, mas acataria as ordens que recebeu, sem fazer perguntas.

O rapaz despertou do transe apenas quando percebeu que um alarme alto soando por toda a estrutura da Organização invadia seu quarto. Em questão de segundos a iluminação do quarto foi cortada. Otto entrou em estado de alerta e ativou a Visio, que além de tudo o auxiliava a enxergar na escuridão.

Tentou acionar o dispositivo em seu pulso, mas os sinais de comunicação haviam sido cortados. De repente, em um reflexo, o jovem virou em posição de ataque e golpeou algo que se aproximava dele. O vulto se desviou do golpe e conjurou uma magia de paralisia tão rapidamente que o rapaz não teve chance de se defender.

- Então você fez mesmo. - disse a figura.
- Você não tem o direito de me julgar, Ed! - bradou o rapaz, furioso.
- Shhhh. Não fale em voz alta. Quer ser considerado um traidor, idiota?

O invasor era um dos irmãos de Otto, Edward Fanyc. Era o filho do meio de Serena e Jonas Fanyc. Ele e Nicolas, o mais velho dos três, seguiam a vida de mercenários, aceitando trabalhos por conta própria e seguindo os passos do pai. Isso era visto como concorrência direta pela Organização e era usado como justificativa para o ódio em relação aos Fanyc. Edward e Nicolas reprovavam a atitude do irmão, de tentar entrar para a corporação que por anos tem tentado acabar com a família.

- Tenho pouco tempo antes que restabeleçam a comunicação, portanto vou falar uma vez só. Não quero que você volte comigo pra casa ou algo do gênero, muito menos que trabalhe com Nicolas e eu. Apenas desista e volte para o lugar de onde é. - disparou Edward.
- Pra ser perseguido pelo resto da vida? Não, obrigado! Quero ter paz, Ed. Medir forças contra a Organização não acabou bem para o papai, e isso pode se repetir com você e todo o resto da nossa família. - Otto tentava conter a voz para não chamar a atenção de quartos vizinhos. - Sei o que estou fazendo. Só me dê um voto de confiança. - pediu.

Os olhos castanhos de Ed estavam azuis por conta da Visio. Otto tentou ler o olhar do irmão e enxergou apenas decepção. Edward acreditava que via mais do que o irmão mais novo conseguia. Ele sabia que Otto seria esmagado, junto com o ingênuo objetivo de estabelecer uma aliança entre duas instituições que são inimigas desde sua concepção. Queria explicar ao irmão de todas as formas possíveis o quão estúpida era a jornada que ele estava trilhando, mas não tinha tempo. Um dispositivo em seu punho direito, semelhante ao utilizado pela Organização, começou a piscar. Era o sinal indicando que a comunicação foi restabelecida e ele tinha de ir embora.

- Espero realmente que você saiba o que está fazendo, Otto. Mas fique ciente de que, se cruzar o nosso caminho, vamos tomar medidas drásticas, mesmo que a mãe não aprove o que tivermos de fazer. - concluiu Ed.

O jovem se preparava para responder quando até mesmo sua visão escureceu. Em segundos a presença do irmão tinha se apagado da sala. Otto sabia que aquele não era de fato o corpo físico de Ed, mas captou a mensagem. Ele sabia que poderia continuar em sua jornada, mas o confronto com a família seria inevitável.

Otto despertou do novo transe apenas quando ouviu as batidas incessantes de Felícia na porta. Ele perdeu a noção de quanto tempo havia passado desde a mensagem que recebeu do irmão.

- Está ficando surdo, Fanyc? - gritou ela do lado de fora da porta.

Otto se apressou para abrir a porta e acomodar a jovem no apartamento. Ele contou sobre a conversa que teve com Ed.

- Olha, até eu tenho dificuldade algumas vezes em entender o que você pretende. Você é a pessoa mais cabeça dura que eu conheço, mas se acha que tem razão, vá em frente. - disse Felícia.
- Não é o que eu acho. Tenho certeza. Essa coisa toda precisa acabar. Nem que eu precise esmurrar o próprio Andrew Padilha. - retrucou ele.
- Sinceramente, Otto, você acabou de derrubar a última ponte entre você e sua família. É bom você realmente ter certeza do que faz. Até mesmo meu pai já pediu que me afastasse de você…
- E porque ainda não fez isso? - o jovem questionou.
 - Quantas vezes tivemos essa discussão? Eu estou com você e a minha decisão é independente do que os outros digam ou pensem. Se a sua escolha foi lutar contra essa situação toda, a minha é ficar do seu lado, idiota!

O rapaz ficou sem palavras diante do que Felícia disse. Os dois se abraçaram e, por algumas horas, deixaram de lado todas as preocupações e perigos que os aguardavam do lado de fora.

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